quinta-feira, 13 de março de 2025

SÓ A ORAÇÃO TEM FORÇA PARA NOS TRANSFIGURAR

 Missa do 2º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 15,5-12.17-18; Filipenses 3,17 – 4,1; Lucas 9,28-36.

 

            “Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28). Quando foi a última vez que você subiu à montanha para rezar? São Paulo afirmou que nós somos cidadãos do céu. Só a oração nos coloca em contato com o céu, com Aquele que é fonte da nossa origem. Um cidadão do céu que não reza tem o seu espírito desnutrido, definha na sua fé e na sua esperança. Um cristão que não reza é vencido pelas diversas situações que não só o desfiguram por fora, mas sobretudo por dentro. Quando diariamente não separamos um tempo para a oração, para estarmos na presença de Deus, as preocupações da vida e as cobranças do mundo vão nos desfigurando e nos enchendo de angústia. Só a oração pode nos transfigurar, como também transfigurar a realidade à nossa volta: “Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29).

            A desfiguração pode ser vista por toda a parte: casamentos / relacionamentos desfigurados pelo distanciamento, pelo desencanto e pelo ressentimento; crianças, adolescentes e jovens desfigurados pelo vício das telas; pessoas desfiguradas por algum tipo de vício, pela cobrança no trabalho, pelas pressões do mundo, pela sobrevivência da família; cidades desfiguradas pela violência, pelo tráfico e pelo fechamento das pessoas em seus próprios interesses; um mundo desfigurado pela guerra, pela fome; igrejas desfiguradas por escândalos; um fé desfigurada pela incapacidade de esperar em Deus...             Jesus se deparou inúmeras vezes com pessoas desfiguradas, e ele mesmo sofreu a desfiguração da cruz. No entanto, sua experiência de transfiguração nos revela que por trás da sombra da cruz há a luz da ressurreição; por trás da dor do sacrifício há a alegria da salvação. É por isso que o evangelista Lucas, ao narrar a transfiguração de Jesus, menciona a Sua glória. “Glória” é um termo bíblico usado para falar da presença de Deus. Na carne humana e frágil de Jesus, que como a nossa se desfigura dia a dia, habita a presença de Deus, que tudo transfigura. Se o passar do tempo nos traz a consciência da nossa finitude, na oração tomamos consciência de que “somos cidadãos do céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor, Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas” (Fl 3,20-21).

            Estamos no ano do Jubileu da Esperança. “A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). A Esperança é a força divina capaz de transfigurar a nossa vida. Ela nos recorda que o nosso corpo humilhado, que carrega em si a fragilidade da natureza humana, um corpo que morre um pouco a cada dia, está destinado a se tornar “corpo glorioso”, pleno de vida, transfigurado definitivamente pela nossa ressurreição futura. Portanto, qualquer que seja a nossa experiência de desfiguração, ela é temporária, e não definitiva.

            Há um detalhe importante na experiência da transfiguração de Jesus: embora Ele se encontrasse na glória de Deus, onde estavam Moisés e Elias, os três conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém (cf. v.31). Isso nos revela que a verdadeira oração nunca é fuga da vida, mas coragem para enfrentar aquilo que faz parte do nosso caminho de vida. A oração não é o momento em que Deus nos tira do mundo e nos blinda contra a dor e o sofrimento, mas o momento em que Ele nos dá o Seu Espírito, para que possamos nos manter fiéis à nossa missão, enfrentando nossa experiência de cruz na certeza de que ela terá como desdobramento a nossa participação na glória de Deus. Por isso, a nossa oração nunca pode se tornar fuga da realidade, mas lugar onde a nossa realidade desfigurada recebe a garantia da transfiguração que Deus opera na história de quem a Ele se confia na oração.

            Presenciando a oração de Jesus, Pedro Tiago e João foram envolvidos por uma nuvem, símbolo bíblico da presença de Deus, e ouviram a Sua voz: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9,35). Nós reclamamos que não ouvimos a voz de Deus em nossa oração, mas essa voz está na pessoa de Seu Filho Jesus. “Escutar” Jesus significa aprender com Ele como lidar com nossas experiências de desfiguração, como tomar consciência da realidade que nos cabe enfrentar e, sobretudo, como rezar, entendendo a oração como o momento em que Deus nos conduz para fora do nosso medo, da nossa angústia, da nossa falta de fé, e alarga o horizonte da nossa compreensão, como fez com Abrão: “o Senhor conduziu Abrão para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!’ E acrescentou: ‘Assim será a tua descendência’ (Gn 15,5).  

            Eis a importância da Esperança em nossa vida! Ela nos conduz para fora da estreiteza do nosso olhar e nos faz enxergar a amplitude do horizonte da nossa vida. A vida não é somente aquilo que estamos conseguindo enxergar neste momento. Deus vê de cima, vê do alto, e por isso nos convida a olhar para o céu e tentar contar as estrelas: elas são tão numerosas quanto a areia das praias! Em outras palavras, ainda que nos sintamos envelhecidos e enfraquecidos como Abrão, ainda que carreguemos em nosso corpo as marcas da morte de Jesus, estamos destinados a carregar em nosso corpo as marcas da sua vida (cf. 2Cor 4,10).

A Campanha da Fraternidade – “Ecologia integral” – quer nos conduzir para fora da indiferença quanto ao sofrimento da Terra e também para fora dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo que atentam contra os recursos da natureza. Ela nos convida a “cuidar da casa”: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (redes sociais) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado (Texto Base da Campanha da Fraternidade 2025, n.16).

Rezemos juntos: “Ó Deus, nosso Pai, ao contemplar o trabalho de tuas mãos, viste que tudo era muito bom! O nosso pecado, porém, feriu a beleza de tua obra, e hoje experimentamos suas consequências. Por Jesus, teu Filho e nosso irmão, humildemente te pedimos: dá-nos, nesta Quaresma, a graça do sincero arrependimento e da conversão de nossas atitudes. Que o teu Espírito Santo reacenda em nós a consciência da missão que de ti recebemos: cultivar e guardar a Criação, no cuidado e no respeito à vida. Faz de nós, ó Deus, promotores da solidariedade e da justiça. Enquanto peregrinos, habitamos e construímos nossa Casa Comum, na esperança de um dia sermos acolhidos na Casa que preparaste para nós no Céu. Amém!” (Oração da CF 2025).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

QUAIS SÃO AS SUAS TENTAÇÕES MAIS FREQUENTES?

 Missa do 1º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.

 

            Em todo primeiro domingo da Quaresma ouvimos o Evangelho das tentações de Jesus. Dois são os motivos. Primeiro, para nos tornar conscientes de que a nossa vida é um combate espiritual. Segundo, para nos lembrar de que a Quaresma, cuja meta é a nossa transformação, a nossa libertação em Cristo, é um tempo mais intenso do ataque do inimigo, para nos fazer desistir da conversão que sabemos ser necessária para a nossa vida. Tomar consciência disso não nos deve desanimar, pois não estamos sozinhos nesse combate espiritual: o Espírito Santo está conosco, como força do Alto, dada por Deus, para nos auxiliar.

            “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão (batismo), e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,1-2). Por qual razão o Espírito Santo nos coloca numa situação de deserto e nos permite ser tentados pelo diabo? Porque Ele é o “Espírito da Verdade” (Jo 16,13) e essa Verdade precisa nos tornar conscientes das mentiras que nos habitam, mentiras que costumamos usar para justificar a nossa permanência no pecado.

            São Lucas nos informa que Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,2). O número “quarenta” simboliza, na Bíblia, a duração da vida de uma pessoa. Portanto, assim como Jesus, nós somos tentados pelo espírito do mal a vida toda, sendo que essa tentação se intensifica quando experimentamos uma situação de fome, de carência, de ausência de algo que nos é importante e necessário. De fato, foi quando Jesus sentiu fome que o diabo se aproximou dele para tentá-lo. Portanto, quando sofremos uma carência, uma ausência, precisamos estar atentos porque ali é o momento oportuno para o tentador se aproximar de nós e nos propor falsas compensações para a nossa fome, para a frustração de um desejo que não está sendo satisfeito em nós.

Enquanto na primeira tentação o diabo propôs a Jesus dar livre curso aos seus desejos e não sofrer a frustração de nada, na segunda ele lhe prometeu um caminho de sucesso, de glória e de plena autorrealização. Exatamente porque vivemos num mundo capitalista que produz desigualdade social, o sonho de consumo da maioria das pessoas é ficar rica. Em nome desse sonho, sacrifica-se a saúde, o casamento, a relação com os filhos, a fé, a espiritualidade, o caráter, a honestidade etc. Enquanto ambicionam “ganhar o mundo inteiro”, essas pessoas destroem-se a si mesmas (cf. Lc 9,25) e aquilo que mais têm de sagrado na vida, esquecendo-se do que o próprio tentador disse: “Tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser” (Lc 4,6). Em outras palavras, o desejo pelo enriquecimento é puramente diabólico.   

Diferente de Mateus e de Marcos, Lucas é o único evangelista que, ao narrar as tentações de Jesus, encerra o relato com uma observação preocupante: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (Lc 4,13). Quando, auxiliados pelo Espírito Santo, conseguimos resistir e não cair em tentação, não podemos aposentar nossas armas espirituais e pensar que conseguimos atingir um nível de maturidade emocional e espiritual que nos garantirá nunca mais cair no pecado. Para o diabo, nunca faltará o “momento oportuno” de voltar a nos visitar e nos tentar. Quando é esse momento? Principalmente, o momento da dor, da perda, do fracasso, da frustração, do cansaço, da decepção com Deus, com as pessoas, conosco mesmos e com a vida, o momento do envelhecimento, da perda de importância para a Igreja e para a sociedade da produção e do resultado; numa palavra, o momento da solidão da morte. É ali que o diabo se aproximará de nós e nos perguntará se valeu a pena termos sacrificado tantas coisas em nome da nossa fé, para agora morrermos como pessoas insignificantes e esquecidas por Deus e pelo mundo. Precisamos estar conscientes e preparados para esse ataque final do maligno.

Quais são suas tentações mais frequentes? Como você lida com sua fome, com sua carência? Você consegue ter maturidade para frustrar seus desejos, sempre que eles se tornam uma armadilha para manter você escravo(a) do pecado? Vivendo em um mundo materialista e competitivo, onde quem pode mais chora menos, você se percebe contaminado pelo desejo diabólico de ser um vencedor, uma pessoa de sucesso, garantindo-se ilusoriamente pelo acúmulo de riqueza material? Seus joelhos se dobram diariamente diante de Deus para pedir que Ele te faça prosperar sempre mais, ou para que Ele te conceda o pão de cada dia? Você tem consciência de que toda vitória sua contra o tentador é apenas temporária e que ele sempre encontrará um momento oportuno para voltar a te tentar? No momento de maior dor, de maior solidão e de maior insignificância, você manterá a sua fé no amor de Deus por você?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

terça-feira, 4 de março de 2025

ESTE HOMEM DEVE MORRER!

 

“Os fariseus saíram da sinagoga e, junto com alguns do partido de Herodes, faziam um plano para matar Jesus” (Mc 3,6).

 “É réu de morte!” Então, cuspiram no rosto de Jesus, e o esbofetearam (Mt 26,66-67).

 “Então eles pegaram pedras  para atirar em Jesus” (Jo 8,59).

 “E a partir desse dia, as autoridades dos judeus decidiram matar Jesus” (Jo 11,53).

 “Nós temos uma lei, e segundo a lei este homem deve morrer” (Jo 19,7).

Estes versículos são apenas alguns exemplos que nos recordam que os verdadeiros inimigos de Jesus nunca foram do campo político e, sim, do campo religioso. Quem matou Jesus foi a Religião, usando para tal crime o braço da Política (O Império Romano). Exatamente como aconteceu com Jesus, quem hoje deseja a morte do Papa Francisco não são pessoas movidas por interesses políticos, mas gente de dentro da Igreja, pessoas que, com a mesma arrogância dos fariseus e doutores da Lei, se consideram “católicos de verdade”, defensores da “sã doutrina”.

Os constantes ataques e perseguições que o Papa Francisco vem sofrendo, desde quando assumiu o seu pontificado, é a prova mais viva do quanto ele é fiel ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo: “Lembrem-se do que eu disse: nenhum empregado é maior do que seu patrão. Se perseguiram a mim, vão perseguir a vocês também... Farão isso a vocês por causa do meu nome, pois não reconhecem aquele que me enviou” (Jo 15,20.21). Unicamente por querer reconduzir a nossa Igreja ao Evangelho e questionar as tradições ultrapassadas que, ao invés de levar as pessoas para mais perto de Deus, as mantém afastadas do Reino, Francisco precisa pagar o mesmo preço que Jesus pagou: o preço da rejeição.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

TEMPO DE TRATAR A FERIDA

 

Missa da Quarta-feira de Cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

 

“Toda a cabeça está contaminada pela doença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés, até a cabeça, não há lugar são. Tudo são contusões, machucaduras e chagas vivas que não foram espremidas, não foram atadas nem cuidadas com óleo” (Is 1,5-6).

            Essas palavras do profeta Isaías revelam a situação do povo de Israel, ferido pelo seu próprio pecado. É a imagem do filho que livremente decidiu deixar a casa do pai, desperdiçou todos os seus bens, passou fome e o único emprego que encontrou foi cuidar dos porcos (cf. Lc 15,14-16). Mas foi ali, naquela situação, que ele “caiu em si” e tomou a decisão de voltar para junto do pai: “Vou-me embora, procurar meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti’” (Lc 15,18).

            Eis o grande convite que o Senhor nos faz, neste início de Quaresma: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, porque eu sou Deus e não há nenhum outro” (Is 45,22). “Volta, Israel, ao Senhor teu Deus, pois tropeçaste em tua falta” (Os 14,2). “Voltai-vos para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). Nós somos livres e, muitas vezes, damos uma direção errada à nossa vida. Como saber se a direção da nossa vida está correta? Se ela está nos levando para Deus. Tudo o que nos afasta de Deus pode até nos dar algum tipo de ganho, mas nos leva para a destruição. Tudo o que nos aproxima de Deus é válido e precisa ser mantido ou retomado.

            Conversão é fazer a volta. Não voltamos para um determinado ponto da estrada; voltamos para uma Pessoa, para o nosso Deus: “É ele quem perdoa todas as tuas faltas e cura todos os teus males. É ele que redime da cova a tua vida e te cerca de carinho e compaixão” (Sl 103,3-4). “O Senhor cura os corações quebrantados e cuida dos seus ferimentos” (Sl 147,3). “Com o Senhor está o amor e redenção em abundância: ele resgatará Israel de toda a sua culpa” (Sl 130,7-8). 

            Jesus é o sacramento da misericórdia de Deus. Ele não veio quebrar a cana que já está rachada, nem veio apagar o pavio que já está quase se extinguindo (cf. Is 42,3). Pelo contrário, Ele “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10); não veio chamar os justos, mas os pecadores, porque o Médico não existe para quem tem saúde, mas para quem está doente (cf. Mt 9,12.13). Eis, portanto, o convite do apóstolo Paulo: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20).

Se é verdade que o pecado nos adoece da cabeça aos pés (cf. Is 1,3-4), temos que nos perguntar se realmente desejamos a nossa cura: “Antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer” (Hipócrates). Quem não está disposto a abandonar as cebolas do Egito nunca porá os pés na Terra Prometida, rica de fertilidade.

A Campanha da Fraternidade nos recorda que a Terra não é um reservatório de recursos sem fim, mas uma Casa a ser cuidada. Além do cuidado com essa Casa (natureza, florestas, rios etc.), devemos cuidar das nossas relações humanas e sociais. 

“Precisamos superar a indiferença frente ao sofrimento da Terra e abandonar a idolatria dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo” (TB, n.14). “O desafio para a nossa conversão nesta Quaresma é cuidar da casa: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (rede) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado” (TB, n.16).  

Uma santa e fecunda Quaresma a todos nós! 


Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

RÁPIDOS EM CRITICAR OS OUTROS, MAS NUNCA DISPOSTOS A FAZER AUTOCRÍTICA



Missa do 8º. Dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 27,5-8; 1Coríntios 15,54-58; Lucas 6,39-45.

            O livro do Eclesiástico faz quatro afirmações sobre o falar: “Os defeitos de um homem aparecem no seu falar” (Eclo 27,5); “O homem é provado em sua conversa” (Eclo 27,6); “A palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7); “É no falar que o homem se revela” (Eclo 27,8).

            Nossas palavras sempre produzem algo. Elas podem levantar muros, causando distanciamento, separação entre as pessoas; ou podem construir pontes, favorecendo o diálogo, o perdão e a reconciliação. O nosso grande problema hoje não reside tanto nas palavras que saem da nossa boca, mas nas palavras que comunicamos nas redes sociais. Aquilo que postamos pode destruir a imagem de uma pessoa, como pode também salvar uma pessoa da autodestruição. Por isso, antes de publicarmos alguma coisa em nossas redes sociais, devemos nos perguntar: Isso que eu vou postar é verdade ou mentira? Minhas postagens favorecem a fraternidade ou o ódio entre as pessoas? Eu costumo contribuir com a disseminação de fake news e desinformação?

              Se o Eclesiástico afirma que “a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7), Jesus explica que a “boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Quem tem o coração ingrato vai sempre reclamar e murmurar. Quem não resolveu seu sentimento de inferioridade vai sempre procurar diminuir os outros e afirmar a si mesmo, de forma autoritária. Quem não enfrenta seus conflitos internos vai sempre despejar sobre os outros palavras grosseiras e ofensivas. Quem não quer enfrentar a verdade vai sempre falar demais, para tentar convencer os outros a respeito da sua própria mentira. Quem busca sempre ganhar o afeto dos outros nunca vai dizer “não”, e vai acabar se sobrecarregando e adoecendo.    

            Antes de uma palavra sair da nossa boca, ela deveria passar pela nossa consciência: O que eu vou falar ou postar vai favorecer o bem ou o mal? Vai edificar ou destruir? Além disso, aquilo que eu falo é uma convicção do meu coração ou um simples repassar para os outros aquilo que eu recebi de algum guia cego? Jesus pergunta: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (Lc 6,39). A Internet está cheia de guias cegos, de motivadores ou orientadores que oferecem receita para tudo: campo financeiro, afetivo, sexual, profissional e espiritual. Só caem no mesmo buraco em que esses guias cegos se encontram quem tem preguiça de pensar, de pesquisar, de ler e de estudar.

            Jesus também nos alerta a respeito dos caçadores de ciscos, que fazem vista grossa às traves de seus próprios olhos: “Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6,41.42). É sempre mais fácil para nós enxergar os erros das pessoas do que os nossos próprios erros. Somos rápidos em criticar os outros, mas quase nunca dispostos a fazer uma séria autocrítica. Ao lembrar que existe uma trave em nosso próprio olho, Jesus nos ensina que todo julgamento nosso sobre determinada pessoa é um julgamento míope: não enxergamos nela o que Deus vê. Além disso, precisamos estar conscientes de que os defeitos que mais detestamos nos outros são, normalmente, aqueles que não suportamos em nós mesmos.

            Para quem gosta de justificar os seus erros culpando o ambiente, o mundo, os tempos atuais, Jesus nos lembra que a questão é interna e não externa. Ainda que sejamos de alguma forma influenciados pela cultura do nosso tempo, somos nós quem decidimos qual atitude adotar diante das pessoas e dos acontecimentos. Há um espaço dentro de nós que está unicamente sob a nossa responsabilidade: o nosso coração. Se ele é bom, de nós sempre sairá o bem; se ele é mau, de nós sempre sairá o mal. Se ele está azedo ou envenenado, de nossa boca só sairá azedume e veneno; se ele está reconciliado e pacificado, de nossa boca só sairá o que favorece a reconciliação e a pacificação.    

        Uma advertência final: “A língua, ninguém consegue domá-la; é mal irrequieto e está cheia de veneno mortífero. Com ela bendizemos ao Senhor, nosso Pai, e com ela maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca provém bênção e maldição. Ora, tal não deve acontecer, meus irmãos. Porventura uma fonte jorra água doce e água salgada?” (Tg 3,8-11).     

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

REAGIR INSTINTIVAMENTE OU DECIDIR AGIR ESPIRITUALMENTE?

 Missa do 7º dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas 6,27-38

                

            Ninguém duvida de que o nosso mundo está mais violento. A questão é saber quem admite olhar para dentro de si mesmo e reconhecer a agressividade que o habita. As cenas de violência, que chegam a nós por meio das telas (TV, computador, celular), se tornaram o recheio do pão nosso de cada dia, e já é consenso que a violência concentrada nos filmes, seriados e novelas não só insensibiliza as pessoas para os dramas reais do cotidiano, como também estimula jovens e crianças a reagirem com agressividade. Para as crianças de hoje, a violência é o principal tipo de entretenimento (jogos de vídeo game!!!). Além disso, boa parte dos filmes que assistimos contém uma ação violenta para cada 5 minutos de filme. 

            Atualmente, a violência que antes só era encontrada nas ruas das cidades grandes, agora mora onde nunca deveria morar: dentro das famílias, das escolas, dos locais de trabalho e das igrejas. Deixamos de ver o outro como nosso irmão e passamos a vê-lo como um monstro a ser destruído. Influenciados pelas redes sociais, nós respiramos ódio como se fosse o ar do nosso dia a dia. Usamos nossas redes sociais para destruir a imagem de pessoas em troca de algumas curtidas. Resumindo, reclamamos de uma violência que nós mesmos ajudamos a criar e a manter viva.  

            O texto bíblico da primeira leitura nos coloca diante de Davi, um homem segundo o coração de Deus. Perseguido de morte pelo rei Saul, Davi e seus homens se encontram acidentalmente com Saul e seu exército dormindo! Esse encontro acidental é interpretado erroneamente por Abisai como providência de Deus, que diz a Davi: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra com uma lançada, e não será́ preciso repetir o golpe” (1Sm 26,8). Mas Davi não quis matar Saul; apenas pegou sua espada e sua bilha de água, as quais estavam próximas da sua cabeça, e se afastou, para deixar claro a Saul que, se quisesse, poderia tê-lo matado, mas não o fez.

            Davi age como um homem celeste, e não como um homem terrestre, usando a linguagem do apóstolo Paulo, na segunda leitura. Enquanto o homem terrestre se deixa arrastar pelos seus instintos, o homem celeste submete seus instintos à sua consciência, procurando agir a partir dos seus valores espirituais. O mais interessante é a insistência do texto no fato de que “ninguém viu” o que Davi fez: “Ninguém os viu, ninguém se deu conta de nada, ninguém despertou” (1Sm 26,12). Quando ninguém te vê, suas atitudes são as mesmas de quando você está sendo observado? Se a vida te desse a chance de destruir quem te faz mal ou te prejudica, o que você faria? Davi não matou Saul porque tinha uma convicção: “O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade” (1Sm 26,23). Você tem essa convicção?

            Embora Davi seja para nós um exemplo edificante, cada um de nós é chamado a se configurar não a Davi, mas a Jesus Cristo, o verdadeiro homem celeste. E Jesus nos lança um sério desafio: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28). “Amem”, “façam o bem”, abençoem”, “rezem”! Em outras palavras, que as atitudes de vocês não sejam guiadas pelos seus instintos, mas pelo meu Espírito que habita em vocês. Comportem-se como cristãos, como pessoas ungidas pelo Espírito do meu Pai, e não como pagãos!

No fundo, as palavras de Jesus no Evangelho de hoje, são um questionamento para cada um de nós: você se comporta como um filho de Caim ou como um filho de Deus? Ao refletir sobre o fato de Caim ter matado seu próprio irmão, o apóstolo João afirma: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida; e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele” (1Jo 3,15). Cultivar ódio nos faz filhos de Caim e não filhos de Deus. Jesus nos revela o que significa ser filho de Deus: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus. Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,35-36).

Não nos esqueçamos: odiar é uma reação meramente instintiva, própria do homem terrestre; amar é uma decisão espiritual, própria do homem celeste. Além disso, estejamos atentos ao estresse e à sobrecarga do dia a dia: eles favorecem o aumento da irritabilidade e nos fazem ter reações desproporcionais.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

Sugestão de vídeo: A estupidez humana.

https://www.youtube.com/watch?v=C-LsAk1yzyo




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

EM QUEM OU NO QUE EU COLOCO A MINHA ESPERANÇA?

 Missa do 6º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 17,5-8; 1Coríntios 15,12.16-20; Lucas 6,17.20-26.

 

            Quantos tipos de pessoa existem no mundo? Segundo a mentalidade bíblica, apenas dois: a pessoa que faz do ser humano o seu apoio e a pessoa que escolhe Deus como apoio. Embora sejam totalmente contrários um ao outro, os dois tipos nos revelam uma verdade: nenhum ser humano é autossuficiente. Toda pessoa precisa apoiar-se em algo ou em alguém maior e mais forte do que ela, para sobreviver. A questão, portanto, não é se nós precisamos ou não de um apoio na vida, mas quem ou o que escolhemos como apoio. Segundo o profeta Jeremias e o salmista, o apoio que escolhemos influencia o nosso presente; segundo Jesus, ele influencia também o nosso futuro.

            Para o profeta Jeremias, ou o ser humano se apoia num outro ser humano ou se apoia em Deus, e a diferença é perceptível: aquele que “faz consistir a sua força na carne humana” é um infeliz, e essa infelicidade está retratada numa imagem: um cardo seco no deserto, que prefere vegetar na secura e na solidão do deserto em que se encontra. Já a pessoa “cuja esperança é o Senhor, é como uma árvore plantada junto às águas” (Jr 17,7-8). Mesmo que as circunstâncias à sua volta não sejam favoráveis (calor, aridez, seca), “sua folhagem mantém-se verde” e ela “nunca deixa de dar frutos” (Jr 17,8).

            Fazer do Senhor nossa esperança é a única forma de não murcharmos, de não secarmos por dentro, principalmente quando as circunstâncias externas não são favoráveis. Fazer do Senhor nossa esperança significa direcionar nossas raízes para Ele, “fonte de água viva” (Jr 2,13). Essa verdade é confirmada pelo Salmo 1: a pessoa que se confia ao Senhor, isto é, que faz d’Ele o seu apoio, “é semelhante a uma árvore, que à beira da torrente está plantada; ela sempre dá seus frutos a seu tempo, e jamais as suas folhas irão murchar. Eis que tudo o que ele faz vai prosperar” (Sl 1,3). Raiz tem a ver com profundidade e também com “escondimento”. É o contrário da superficialidade e da exposição nas redes sociais, em busca de reconhecimento. 

            O que nos chama a atenção no Salmo 1 são as consequências para a vida da pessoa que não tem suas raízes em Deus: ela se torna como a “palha seca espalhada e dispersada pelo vento” (Sl 1,4). É a imagem da desorientação, de quem hoje está seguindo um formador de opinião, amanhã outro e depois de amanhã um outro ainda, e assim por diante. É um cego sendo guiado por outro cego, uma pessoa arrastada pelas circunstâncias, que, por não se responsabilizar por sua própria vida, vive culpando o mundo por sua infelicidade.

            Enquanto o profeta Jeremias e o salmista falam do presente, Jesus aponta para o futuro. Esperança tem a ver com futuro, e o nosso futuro é preparado a partir das escolhas que fazemos no presente. Se a pessoa que faz consistir sua esperança num outro ser humano e aquela que faz do Senhor sua esperança são totalmente contrapostas, Jesus revela essa contraposição a partir das seguintes expressões: “Felizes os pobres” / “Ai de vós, ricos”. “Felizes os que passam fome” / “Ai de vós que agora tendes fartura”; “Felizes os que choram” / “Ai de vós que agora rides”; “Felizes os que são odiados por minha causa” / “Ai de vós que sois elogiados”.  

            Ao fazer essa inversão da ideia de felicidade que nós temos, Jesus quer nos tornar conscientes da inversão de valores em que vivemos. Além disso, precisamos ter claro que o Evangelho não é um livro de autoajuda e Jesus não é um motivador que nos ensina como obter sucesso na vida. Todo pregador que asperge água benta sobre as injustiças sociais e se mantém distante das pessoas que sofrem por causa das desigualdades sociais é um falso profeta; é um pregador mundano, que distorce a Palavra de Deus para legitimar uma felicidade mundana e egoísta, que não só se mantém indiferente à dor de quem sofre, mas que é mantida justamente à custa dos que sofrem.  

            Trazendo para o nosso hoje o ensinamento de Jesus, fica claro que “Deus quer que tenhamos o necessário para viver dignamente; mas não quer que guardemos para nosso uso exclusivo os bens que pertencem a todos. Deus quer ver-nos caminhar sem privações e sem carências; mas não quer que adoremos o dinheiro e que sejamos escravos de coisas que são meramente acessórias. Deus quer que tenhamos conforto e bem-estar; mas não quer que ignoremos a miséria e a indigência em que vive uma parcela da humanidade” (Liturgia Dehonianos).  

            Assim como Jesus, o apóstolo Paulo também nos faz um alerta a respeito da nossa compreensão do que seja a esperança: “Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, nós somos – de todos os homens – os mais dignos de compaixão” (1Cor 15,19). Fazer de Deus nossa esperança tendo como objetivo estar entre os “vencedores” deste mundo é assinar um atestado de ignorância em relação à Sagrada Escritura como um todo e, principalmente, em relação ao Evangelho. Tanto o Pai quanto o Filho escolheram estar entre os “perdedores” deste mundo, entre aqueles que o mercado exclui para garantir a sua fome insaciável de lucro, ainda que à custa da desumanização dos mais fracos.

Cada um de nós precisa decidir onde colocar suas raízes, ou seja, onde apoiar-se, no que depositar a sua esperança.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi